quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Narração II

            Tinha eu cinqüenta anos de idade. Aparentava um pouco menos, talvez 38.  Tinha filhos. Não mais esposa. Onde estava ela? Morta e enterrada. Assim como eu estarei até o fim deste conto, senhor leitor. Mas vamos por partes.
            Três eram meus filhos: Rodrigo, o varão mercenário. Era meu primogênito. Rui, o rapaz sentimental. Sentimental a ponto que desconfiássemos de sua virilidade. Rubens era meu caçula, um rapaz robusto, porém pouco inteligente. Os três nunca se deram bem, desde a infância. E tal desentendimento se prolongou por toda vida.
            Vivíamos num matadouro. O lugar, senhor leitor, nem queira imaginar como é. Havia sangue quente espalhado pelo chão, animais gritando em agonia, moscas varejeiras por todo lugar. O visual era o mais chocante: animais abatidos pendurados, alguns dilacerados, outros com aparência de vivos e olhos brilhantes apesar de mortos. O cheiro de carniça no ambiente era uma constante. Havia lá, no matadouro, além dos currais, chiqueiros, onde porcos exalavam todo seu mau cheiro em lindos dias de sol escaldante. Situávamo-nos no interior do nordeste.
            E dessa forma, vivíamos felizes e contentes, como o senhor leitor poderia imaginar. Pois só imaginar. Com filhos de personalidade tão diferentes era impossível vivermos felizes. A começar por Rui, que achava um absurdo vivermos explorando a vida de seres inocentes. O senhor leitor não acredita o quanto ele era insistente quanto a isso. Não trabalhava conosco no matadouro. Ficava sempre dentro de casa ajudando sua mãe. Talvez daí venha todo seu sentimentalismo. Rodrigo não via animais no matadouro, via cédulas. Cada um era uma cédula de maior ou menor valor, de acordo com sua perspectiva de trabalho. Ele realmente entendia de abatedouros. Sempre estava acompanhado por Rubens que era seu braço direito. Na verdade Rubens era praticamente seus membros. Este cuidava de todo o trabalho pesado sozinho. Não era lá muito inteligente, e admirava o irmão que parecia sê-lo.
            Na verdade nunca me envolvi com meus filhos verdadeiramente, senhor leitor. Não participei de sua formação, apenas os assisti crescer e se tornar o que a vida e eles quiseram. Talvez esteja aí o ponto chave do problema. Achava que meu pai o tinha feito demais, me forçando a trabalhar nesse matadouro, e forçando a ser o que ele queria que eu fosse. E ele conseguiu. Mas eu não, eu não iria perpetuar isso. Talvez tenha levado isso demasiadamente a sério. Morri por causa disso. Contudo, morri satisfeito comigo mesmo, apesar de ter sido das piores pessoas que já vi. Já deve estar se perguntando como morri, não é mesmo, senhor leitor? Saiba que minha morte foi digna de cinema, com cenas surpreendentes e visual estonteante.
            Minha morte começou com a morte de minha esposa. Ela era minha companheira. Sempre quieta e calada, mas ali, do meu lado a todo tempo, sem nunca reclamar, se exaltar ou qualquer coisa assim. Se ela me amava eu não sei, mas ao menos me respeitava. E isso era o que eu admirava naquela mulher. Sempre calada, prestativa, presente, cuidadosa e atenciosa. Era quase a imagem de uma santa, ali, bela e quase sempre imóvel, olhando de maneira tão doce que chegava a constranger. Como uma pessoa que passou tudo o que ela havia passado ainda conseguia manter tal olhar sereno? Mistério.
Ela morreu de um ataque fulminante do coração. Até hoje não sei ao certo. Sei que ali morri junto. Tornei-me uma pessoa sem memória, sem passado, sem história e sem saudade. E uma pessoa só, apesar da companhia de meus filhos. Estes, com a morte da mãe, enlouqueceram. O senhor leitor deve imaginar o que é para um filho perder a mãe, não? Isso ao invés de uni-los, só piorou o convívio. Entretanto, o mais sentido com tudo era o que menos falava.
Rui viu a mãe morrer aos seus pés, como uma flor que murchava repentinamente na frente de um florista sem água para regá-la. Foi essa a sensação que ele sentiu. Na verdade ele nunca saberia descrever tal sensação, nem mesmo eu, mas a morte nos dá certa visão das coisas. Rui não comia, não dormia, vivia perambulando como um zumbi. Aparência magra, amarelado, olhos fundos e uma tristeza contagiante no olhar. Não existia a possibilidade de olhá-lo e não sentir um vazio sufocante. Ele não falava mais com ninguém. As únicas coisas que fazia era o que sua mãe fazia. Cuidava da casa, da cozinha, da comida, sempre com o ar morto, como a mãe.
Eu não conseguia me preocupar. Na verdade eu não conseguia sentir absolutamente nada. Rodrigo foi o que mais se desesperou, mas o que melhor aceitou o fato com o tempo. Tudo isso era complexo demais para que Rubens pudesse entender as proporções reais. Ele se desesperou como o irmão, mas foi um desespero sem sentido, sem o mínimo de razão. Ele só colocou o vazio que todos sentíamos para fora. E sentia saudades. Saudade da comida, da organização perfeita da casa, da prestatividade da mãe.
Tudo perdera sentido dentro daquela casa. Eu não sabia porquê matava os animais, Rodrigo não sabia porquê ou para que ganhar dinheiro, Rubens não sabia porque trabalhar tanto. Mas Rui era o pior: não sabia nada. Não se importava com nada. E assim a vida o arrastou durante oito anos. Oito anos que pareceram oitocentos. Mas um fato trágico deu uma reviravolta em toda essa situação.
Um dia qualquer, quando eu estava tirando o couro de um garrote, que morreu de não sei o quê, Rui vinha com o bule e xícaras para nos trazer café. Ainda com seu ar mórbido, me serviu sem sequer olhar ao redor. Serviu Rubens e Rodrigo em seguida. Rodrigo traga o café e diz:
- Essa porcaria de café tá fraco! Tá horrível, não vou beber isso. E em um acesso de fúria joga o café quente no rosto de Rui.
Rubens começa a rir desesperadamente até notar que o clima não era propício para tal reação.
- Vou lá pegar aquele tronco que você pediu, Rodrigo.
Rui está estático com o bule na mão. Eu assistia tudo a de camarote, sem entender o que estava acontecendo. Rui e Rodrigo se olharam durante alguns segundos que pareceram durar uma vida, quando, de repente, Rui segurando a alça do bule, lhe acertou um golpe com o objeto em sentido horizontal, para ser mais específico, da direita para a esquerda, que acertou o olho de Rodrigo. Senhor leitor, eu não gostaria de ter tomado tal golpe. Não foi um golpe por um simples motivo. Foi um golpe de revolta, de raiva, de remorso, de todo o sofrimento que o irmão causara ao outro durante toda a sua vida. Foi um golpe que o coração controlou não a mão ou o braço. Foi algo que veio dentro de sua alma, algo que o trouxe de volta à vida por alguns milésimos de segundo. Ele precisava disso. Isso precisava dele.
E, pela primeira vez em oito anos, vi um resquício de vida no garoto: um esboço de sorriso amarelo, fraco e desastrado. Isso me tocou de alguma forma. De uma forma estranha, que fez sentir algo que eu nunca havia sentido em toda minha vida. Não sei dizer se foi bom ou ruim, senhor leitor, e não há sensação pior do que não saber direito o que se está sentindo. Mas não há sensação melhor do que sentir. E estava eu lá, no meio desse paradoxo de sentimentos, vendo Rodrigo caído no chão, com o rosto escorrendo sangue.
O sangue de Rodrigo se misturava com o sangue do boi que eu tirava a pele, gerando um cheiro que nunca exalara naquele ambiente. Lidamos com sangue toda a vida e nunca tínhamos sentido o cheiro de sangue humano. Talvez não exatamente isso, talvez o cheiro de sangue humano misturado com sangue animal. Rui sentia-se satisfeito ao ver o irmão Rodrigo, abatido como um boi, coisa que ele abominou por toda a vida. Rodrigo estava lá no chão, sangrando, como todos os animais que ele abatera. Quem abatia, agora fazia parte do abate. E isso causou uma felicidade cruel em Rui, que há muito não sabia o que era felicidade.
Rubens voltava calmamente de onde estava quando se deparou com a seguinte cena: Rodrigo, no chão, caído desajeitadamente, por cima dos próprios braços, com uma poça de sangue ao redor de seu corpo, que ao ver de Rubens, já era um cadáver. Rui estava com o bule na mão, e este estava amassado e sujo de café. Havia manchas de café e sangue em sua roupa e aquele maldito esboço de sorriso em seu rosto. O olhar era um misto de felicidade e vingança, com leves pitadas de diversão em ver o irmão caído. Eu estava estático, com uma faca suja de sangue já escorregando pelos dedos. Estava à meia distância, o que proporcionava uma boa visão dos três ao mesmo tempo, sem precisar mexer a cabeça para vê-los, como um quadro.
E este seria um dos quadros mais belos e humanos do mundo. O ar de vingança e felicidade de Rui, a feição desesperada de Rubens e a situação trágica a qual Rodrigo era protagonista: a humanidade ali, nua e crua.
Rubens, ao ver tudo isso, foi se aproximando lentamente de Rui, com o receio que o desespero causa, e com o choque que a visão proporciona. Parou defronte ao irmão e gritou como nunca havia gritado antes:
- O que aconteceu?! Por que você fez isso?! Você tá louco?!
E Rui ainda estático, sem olhar o irmão, só conseguia pensar em como o irmão, que não tinha uma inteligência tão apurada, tinha certeza que ele dera o bendito golpe em Rodrigo.
Depois desse transe, guardei minha faca na cintura do avental e comecei a caminhar rumo ao local onde estava Rui estático, Rubens exaltado e Rodrigo desmaiado. Enquanto me aproximava do local, vi que Rodrigo começou a fazer movimentos inibidos, voltando à consciência. Num estalo, resolvi ajudá-lo a levantar. Ele levantou zonzo, sem saber o que estava acontecendo. Ao ver o irmão, me atacou, pegou a faca que estava em minha cintura (o senhor leitor não sabe o quão grande e afiada era essa faca) e foi de encontro ao irmão, numa velocidade e fúria jamais vista.
Consegui, não sei como, me colocar a frente de Rui antes de Rodrigo, que vinha armado e com os olhos em chama. Ele empurrou Rubens e esgoelou:
- Sai daí! Eu vou matar esse desgraçado!
- Você tá enlouquecido de raiva! Se acalma! Larga essa faca! – disse eu, num súbito ato digno e justiceiro.
            Rui continuava estático e Rubens só assistia ao diálogo gritado e assustador, quando Rui gritou, de forma dura e prolongada, num rasgo de fúria:
            - Sai!
            Durante esse grito, atacou com toda a força e raiva do mundo o irmão. Eu não me movi e recebi a facada no lugar de Rui. A faca entrou abaixo do osso do meu ombro, acima do peito. O sangue jorrava como um chafariz. Rodrigo se desesperou, largou a faca e ajoelhou sobre mim, que já estava caído no chão nesse momento. O sangue jorrou em sua face, que ficou completamente vermelha.
            O mais assustador, senhor leitor, é que não senti dor alguma. Caí por vertigem, uma fraqueza instantânea que me puxou vagarosamente ao chão. Como Romeu, em Romeu e Julieta, morri vagarosamente, como se estivesse dormindo, esperando encontrar meu amor na vida pós-morte. Mas meu amor não era uma pessoa ou mesmo minha esposa. Meu amor era o amor em si, o sentimento que eu nunca sentira na vida e desejava de corpo e alma sentir após a morte. Talvez essa fosse exatamente a única solução para que eu pudesse encontrá-lo.
            Rubens se debruçou chorando sobre meu corpo, e Rodrigo gritava desesperadamente. Gritava coisas estranhas, sem sentido, talvez não fossem nem palavras, mas gritava. Gritava para liberar sua loucura.
            O fato mais estranho foi que, até o meu falecimento, não vi o filho pelo qual dei a vida. Mas me senti importante. Importante por ter salvado a vida de alguém, já que a minha vida tinha valido muito pouco e eu nunca tinha feito nada de importante. Irônico pensar que o primeiro ato que eu realmente julguei importante na vida foi exatamente o ato de findá-la por alguém.
            E assim, senhor leitor, acabou-se uma família que na verdade nunca existiu realmente. Todo o acontecido no dia de minha morte foi apenas vontades de vidas inteiras colocadas em prática. Tanto o meu feito nobre, quanto a vingança do irmão reprimido e até mesmo a tentativa de assassinato do irmão que reprimia. Na verdade Rodrigo apenas queria que a mãe lhe desse tanta atenção quanto dava a Rui. Rui queria que sua mãe nunca saísse de perto dele. Rubens queria ser como o irmão mais velho e por isso, fazia tudo o que ele queria, com a esperança de que conseguiria se tornar ele. Eu, que não queria nada. Na verdade, queria alguma coisa, que algo importante acontecesse. Minha esposa foi a única que não compartilhava desses sentimentos mesquinhos e humanos. Talvez ela nem fosse de fato humana.
            E assim, senhor leitor, acabou essa suposta família. O homem destrói o homem pelo simples fato de ser homem.

3 comentários:

Rôney disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rôney disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rôney disse...

Eu apaguei os comentários anteriores porque várias pessoas poderiam me interpretar mal.

Mas o texto está muito bom, "senhor escritor". Parabéns.